A força-tarefa da Lava Jato descobriu que pessoas investigadas no escândalo de corrupção da Petrobras estão usando a lei de repatriação de bens e de dinheiro para lavar recursos que vieram de propina. Mas a Receita Federal afirma que, se for comprovado que o dinheiro é de origem ilícita, a legalização dos recursos vai ser cancelada.
A estratégia é ousada: receber dinheiro de propina no exterior e depois usar um canal oficial para repatriar e regularizar milhões de reais. Um esquema que, segundo os investigadores da Lava Jato, só é possível por causa de uma brecha no Programa de Regularização Cambial e Tributária, a chamada Lei da Repatriação.
Sancionada em 2016 pela presidente Dilma Rousseff, a lei permitiu que bens e dinheiro não declarados no Brasil fossem regularizados, mas com algumas condições: o patrimônio teria que ter origem lícita e era preciso pagar multas e impostos equivalentes a 30% do valor declarado.
“Em troca desses 30%, o governo criou uma fantasia, uma declaração que não é verificada”, diz o procurador Carlos Fernando dos Santos Lima.
A crítica do procurador da Lava Jato tem a ver com um ponto da lei, que criou uma espécie de blindagem ao contribuinte. A divulgação ou a publicidade dos dados de quem adere ao programa é considerada quebra de sigilo fiscal.
E uma norma interna da Receita criou mais uma barreira para o acesso às informações. Uma nota técnica que o Jornal Nacional teve acesso explica que, para proteger o sigilo fiscal dos contribuintes, houve uma mudança na forma como os documentos são registrados nos computadores da Receita.
Funciona assim: quem tem dinheiro ou bens não declarados no exterior comunica à Receita e paga os débitos. Só que as informações ficam registradas no CNPJ da própria Receita, e não no CPF ou no CNPJ do contribuinte, o que dificulta a fiscalização dos auditores.
Foi por isso que, ao anunciar a prisão de dois ex-gerentes da Petrobras, os procuradores da Lava Jato falaram em “caixa preta” da repatriação.
“Um dos gerentes detidos utilizou desse meio para lavagem de capitais. Então, a Lava Jato deve abrir a caixa preta dessa Lei de Regularização Cambial e realmente verificar de que forma está sendo feito esse procedimento”, diz o procurador da República Diogo Castor de Mattos.
O ex-gerente é Márcio de Almeida Ferreira. Ele só foi descoberto porque passou a ser investigado. A Justiça autorizou a quebra dos sigilos bancário e fiscal de Márcio e, assim, a Receita pôde analisar o histórico relacionado ao CPF dele.
Descobriu que, em 2016, Márcio usou a Lei da Anistia Fiscal para declarar R$ 48 milhões de uma conta nas Bahamas. Os investigadores acreditam que seja dinheiro de propina, mas ao tentar rastrear a origem do valor o auditor encontrou um obstáculo: ele não pôde apurar como Márcio juntou todo esse dinheiro, porque os auditores não têm autorização de acesso.
Não é um caso isolado, diz o presidente da Associação Nacional dos Auditores, Kleber Cabral.
“A Receita sozinha, da maneira como ela está atuando, não vai identificar, porque a própria lei proíbe que eu vá atrás da origem dos recursos. A lei vai servir para a própria lavagem de dinheiro, e uma lavagem de dinheiro até barata”, diz Kleber Cabral.
Os auditores também dizem que não conseguem saber se o dinheiro usado para pagar o imposto e a multa da repatriação é lícito. Ou seja, criminosos podem usar dinheiro ilegal para legalizar dinheiro de corrupção.
Foi exatamente o que fez o operador financeiro Renato Chebar. Em outubro de 2016, ele conseguiu transferir US$ 1,5 milhão de uma conta no Uruguai para um banco brasileiro. E usou US$ 1,25 milhão para quitar os débitos do Programa de Anistia Fiscal. Na época, declarou que era dinheiro limpo, mas depois confessou que se tratava de propina do empresário Eike Batista para o ex-governador do Rio Sérgio Cabral.
O casal de marqueteiros João Santana e Mônica Moura também planejava usar a Lei de Repatriação, mesmo sendo dinheiro de origem ilícita.
À Justiça, Mônica confessou que “deixou de declarar suas contas no exterior, pois aguardava promulgação de eventual Lei de Repatriação de Valores, o que retiraria o caráter ilícito da manutenção de uma conta da Suíça”.
Fontes ouvidas pelo Jornal Nacional afirmam que, pelo menos, outras 15 pessoas estão na mira da Lava Jato por suspeita de terem usado a lei para movimentar dinheiro de corrupção. Procuradores e auditores da Receita dizem que, do jeito que está, o Programa de Regularização de Bens e Recursos facilita a lavagem de dinheiro.
Em nota, a Receita Federal garantiu que tem meios para identificar abusos na regularização de ativos no exterior e que não há como alguém se beneficiar quando a origem dos recursos é ilícita. A Receita afirma também que quem aderiu ao programa está sujeito a um controle posterior e que, se não comprovar as informações declaradas, perderá o direito à regularização dos recursos.
Em relação à proteção do CPF ou CNPJ dos declarantes, a Receita disse que é uma norma, para evitar que pessoas estranhas ao processo tenham acesso aos dados, e que isso não impede a fiscalização dos técnicos responsáveis.
Em março, o presidente Michel Temer sancionou, sem vetos e mudanças, uma segunda fase da Lei de Repatriação, que reabre o prazo para regularização de bens e valores mantidos no exterior.
“Isso vai além da anistia da sonegação fiscal e da evasão de divisas que o governo permitiu com a Lei de Repatriação. Isso é usar a lei para legalizar a corrupção. Isso nós temos que combater”, afirma o procurador Carlos Fernando dos Santos Lima.
A defesa de Márcio de Almeida Ferreira negou que o cliente tenha repatriado dinheiro ilícito.
O advogado de Renato Chebar não deu retorno aos nossos contatos.