Passados mais de dois anos desde a instauração da Lei do Feminicídio no Brasil, o estado da Bahia registra apenas uma condenação, que prevê a violência de gênero como agravante. O caso ocorreu há cerca de uma semana, quando o Tribunal do Júri de Salvador condenou R. S. dos S. J. a 20 anos, nove meses e 22 dias de prisão, em regime fechado, pelo assassinato da companheira, que estava grávida dele.
À pena estão somados cinco anos de prisão, porque, segundo o Ministério Público da Bahia (MPE), o crime foi praticado “contra mulher por razões da condição de sexo feminino” e, além disso, o assassinato ocasionou aborto, considerado crime nas leis brasileiras.
Para a desembargadora e coordenadora da Mulher do Tribunal de Justiça da Bahia (TJBA), Nágila Brito, a demora para esse tipo de condenação ocorre porque os crimes que envolvem qualquer atentado à vida “exigem mais cuidado e passam por muitos trâmites”. Além disso, ela destaca o fato de as defesas dos acusados recorrerem até a última instância, como forma de ganhar tempo e adiar o julgamento.
“Tudo se recorre nesse país, porque são muitas instâncias, porque [a defesa] ganha tempo, atrasa e se esquece o abalo do crime. O júri vai muito no emocional [durante o julgamento], a população se revolta. Quanto mais demora para isso ocorrer, a tendência é que a sentença seja amenizada”, observa a desembargadora, que destaca a importância de considerar o machismo em qualquer tipo de violência contra a mulher, mesmo que a Justiça “seja cega”.
“Vejo os noticiários e fico apavorada. Os homens matam uma e parecem deixar outra para o dia seguinte. A Justiça, nesse aspecto, tem que ser cega, mas na questão de não observar quem são as partes. Porém, [a Justiça] tem que ter olhos abertos para verificar que o crime contra as mulheres era invisível e não será mais, como injúria, estupro, lesão física, violência psicológica. Nós, mulheres, fomos criadas para ser submissas, isso é inadmissível”, comenta a magistrada.
Apesar da lentidão durante todo o processo, até o momento da sentença final, Nágila Brito cita ações do Judiciário, no sentido de dar celeridade e respostas à população, como forma de amenizar o sentimento de impunidade. Um dos pontos citados por ela é a Campanha Justiça Pela Paz em Casa, que ocorre três vezes ao ano, quando o Judiciário de cada estado intensifica ações como júris de feminicídio, audiências ligadas à Lei Maria da Penha, medidas protetivas e sentenças que envolvem todo tipo de violência contra a mulher. Criada pela presidente do Supremo Tribunal Federal, ministra Cármen Lúcia, a campanha mobiliza tribunais do país, durante uma semana, três vezes por ano.
Falta de acolhimento
Embora os mutirões atuem no sentido de dar celeridade aos casos de violência de gênero, a magistrada do TJBA alerta para a dificuldade que as mulheres encontram, no início do processo, como o momento da denúncia. Para ela, muitas mulheres se sentem desacreditadas e desencorajadas a seguir adiante, seja por despreparo dos profissionais que deveriam prestar apoio, seja por ações machistas, que motivam questionamentos que põem a vítima em “situação constrangedora”.
“Essa é a nossa grande preocupação: capacitar a polícia, que é a primeira porta onde a mulher bate. Não temos delegacias especializadas para a mulher, que sejam suficientes para tanta busca de ajuda. [As vítimas] vão aonde a maioria é de homens, que não fazem o acolhimento adequado. Estamos nessa luta com palestras e capacitação, todos devemos ser capacitados para ter outro olhar. Elas ficam desacreditadas quando não são bem acolhidas”, observa Nágila.
Essa dificuldade ocorre até mesmo em casos em que há tentativa de intervenção em uma situação de violência. A atriz Letícia Paulina conta que presenciou uma briga de casal, no estacionamento de um hipermercado em Salvador. A mulher era espancada, com socos e um capacete, pelo homem, que aparentava ter um relacionamento com ela. Com medo, Letícia acionou os seguranças do local, que se negaram a ajudar, alegando ser “briga de marido e mulher”.
“Ele deu dois murros no rosto dela, além de bater com o capacete, porque ela tentava pegar o celular que ele havia tomado. Enquanto isso, pessoas passavam e nada faziam, além de piadas. Os seguranças se aproximaram, mas disseram que não fariam nada. Ele tentava enforcá-la, gritei muito, ele subiu na moto e acelerou com ela em cima. Não sei em que aquilo acabou, mas denunciei a atitude dos funcionários ao supermercado e sinto não poder ter feito algo por ela”, conta a atriz, que também ligou para a delegacia para contar a omissão dos seguranças. Mesmo assim, disse ter sido desencorajada a seguir a denúncia, porque não seria possível encontrar vítima e agressor.
A orientação de instituições de defesa de direitos humanos, inclusive da mulher, é de que qualquer situação de violência seja denunciada nas delegacias, ou pelo Disque 180. Esse tipo de atitude pode partir de qualquer pessoa que tenha presenciado alguma situação ou que suspeite de violência contra alguma mulher. O objetivo é incentivar as denúncias, que muitas vezes não são feitas pelas vítimas por medo ou ameaças recebidas.
Pensando na dificuldade que algumas mulheres passam em delegacias para fazer a denúncia, a militante feminista Sandra Muñoz atua pessoalmente, dando apoio e suporte a essas mulheres. Nas redes sociais, ela divulga o próprio telefone celular e oferece acompanhamento a qualquer mulher vítima de violência, até a delegacia ou durante o exame de corpo de delito, que comprova as agressões físicas.
“Quando vi esses relatos [de falta de acolhimento], comecei a me preocupar. Desde pequena, vi minha mãe sofrendo violência do meu pai. Desde então, não parei de lutar pelos nossos direitos. Passei a acompanhá-las porque não são respeitadas e há uma mania de romantizar essa violência: geralmente pedem que a vítima dê uma chance ao agressor ou sugerem que ele vai mudar. Não há acolhimento, muitas vezes. Homem não tem de estar em delegacia de mulher, atendendo mulher”, argumenta a militante, que é uma das coordenadoras do coletivo Marcha das Vadias.
De acordo com a Secretaria de Política Para as Mulheres da Bahia, o estado é o segundo no Brasil com maior número de feminicídios e quinto no ranking mundial. Somente entre os meses de janeiro e março, deste ano, a Secretaria de Segurança Pública (SSP) da Bahia registrou mais de 10 mil casos de violência contra a mulher em todo o estado. Os casos se referem a agressões, estupros e assassinatos. Somente na capital, Salvador, são mais de 2,5 mil registros, o equivalente a 25% do total de casos. O levantamento leva em conta mulheres acima de 18 anos.
Em relação ao estupro, foram 85 em nível estadual, incluindo 23 na capital baiana, no primeiro trimestre de 2017. Segundo a SSP, os meses de abril e maio já registram casos de violência de gênero, mas ainda não há dados quantitativos.
Sayonara Moreno – Correspondente da Agência Brasil
Edição: Graça Adjuto