Contribuintes têm conseguido decisões na Justiça para suspender a cobrança de tributos julgados como devidos pelo Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) por causa do voto de qualidade – quando, em caso de empate, o presidente (representante da Fazenda) dá a palavra final. A Honda obteve um dos primeiros acórdãos de que se tem conhecimento no Tribunal Regional Federal (TRF) da 3ª Região. Além dela, pelo menos outras duas empresas conseguiram liminares favoráveis.
Como são disputas milionárias, as decisões são importantes para os contribuintes não só pela suspensão das cobranças, mas porque permitem levar as discussões do Carf ao Judiciário sem oferecer garantias judiciais (como seguro ou fiança bancária).
“Quando o contribuinte sai da esfera administrativa e inicia uma discussão na Justiça, ele tem um gasto colossal com garantia”, diz o advogado Pedro Teixeira de Siqueira Neto, do Bichara Advogados. Segundo ele, o seguro tem custo de 2% ao ano. Uma discussão de ágio, por exemplo, em que é comum ultrapassar R$ 1 bilhão, o custo anual seria de mais de R$ 20 milhões.
Luiz Gustavo Bichara, sócio da mesma banca, complementa que em algumas corretoras esses seguros precisam ser renovados anualmente. E acrescenta que, em tempos de crise, os contribuintes, sem dinheiro nem ativos, sequer conseguem contratá-las – o que inviabiliza as discussões.
As empresas, porém, só têm conseguindo afastar as garantias porque ingressaram com os pedidos na Justiça (ações anulatórias) antes de o Fisco iniciar a execução dos débitos. Se esperassem, teriam de se submeter à Lei das Execuções Fiscais, que exige pagamento para o contribuinte apresentar recurso.
A Honda discute uma autuação de 2011 em que o Fisco cobra o PIS e a Cofins-Importação sobre remessas de royalties para o exterior, que seriam decorrentes de contratos de transferência de tecnologia, colaboração técnica e também de serviços técnicos.
No Carf, a cobrança foi mantida pelo voto de qualidade. A empresa recorreu, então, à Justiça e pediu que, por causa da divergência entre os conselheiros, prevalecesse o entendimento em benefício ao contribuinte. A decisão, impedindo a inscrição do débito na Dívida Ativa da União, foi proferida pela 8ª Vara Federal de Campinas e depois mantida, de forma unânime, pela 3ª Turma do TRF da 3ª região.
O entendimento foi que dúvida objetiva sobre a interpretação de fato jurídico tributário não poderia ser resolvida por voto de qualidade. De acordo com a decisão, mantida pelos desembargadores, em caso de empate deveria prevalecer posição favorável ao contribuinte.
Advogado da empresa, Pedro Guilherme Accorsi Lunardelli, sócio da Advocacia Lunardelli, afirma que o voto do desempate tem sido usado de maneira indevida não só no Carf, mas também em outros tribunais administrativos. Entre eles, o paulista Tribunal de Impostos e Taxas (TIT) e o Conselho Municipal de Tributos (CMT) de São Paulo.
“Apesar das decisões favoráveis aos contribuintes [na Justiça], a Receita Federal não abre mão”, diz. De acordo com o advogado, no antigo Conselho de Contribuintes, sucedido pelo Carf, o voto de qualidade era usado com parcimônia. O uso excessivo, afirma, leva à busca do Judiciário e a decisões que confirmam a ilegalidade.
Outras duas empresas conseguiram, recentemente, liminares para suspender a exigência de valores julgados como devidos pelo Carf por meio do voto de qualidade. As decisões foram obtidas na 2ª Vara Federal da Seção Judiciária do Distrito Federal e na 22ª Vara Federal da Seção Judiciária do Estado de Minas Gerais.
O juiz Charles Renaud Frazão de Moraes, do DF, considerou a regra do artigo 112 do Código Tributário Nacional (CTN). Pelo dispositivo, a lei tributária que define infrações ou penalidades deve ser interpretada da maneira mais favorável ao acusado, “em caso de dúvida quanto à capitulação legal do fato, à natureza ou às circunstâncias materiais, autoria, imputabilidade, ou punibilidade ou mesmo a natureza da penalidade aplicável, ou sua graduação”.
Felipe Kneipp Salomon, do Levy & Salomão Advogados, destaca, contudo, que não há uma jurisprudência consolidada sobre os votos de qualidade no Carf.
A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) já definiu que vai questionar o modelo de desempate no Supremo Tribunal Federal (STF) por meio de ação direta de inconstitucionalidade. Mas apesar de anunciada, a ação ainda não foi proposta.
Matérias sobre o voto de qualidade no Carf têm o acompanhamento especial da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN). “A PGFN acredita na reversão dos pronunciamentos, que não se sustentam ante a presunção de legitimidade do ato administrativo e o princípio da legalidade”, afirma Rogerio Campos, coordenador-geral da representação judicial da PGFN. Ele acrescenta que os votos não são decisões a permitir o entendimento de que há dúvida, mas sim divergência.
Seguindo essa linha, o procurador-chefe da Coordenadoria do Contencioso Administrativo Tributário (Cocat), Moisés de Sousa Carvalho Pereira, diz que o artigo 112 do CTN é aplicável apenas para infrações ou penalidades nos casos em que há dúvida. Assim, o dispositivo não poderia ser usado para cancelar o lançamento do tributo devido.
No processo administrativo fiscal federal, a previsão legal é de voto de qualidade para os presidentes dos colegiados, função restrita a conselheiros fazendários. “A solução adotada é coerente com a natureza do Carf: tribunal administrativo fiscal com atribuição para revisar a legalidade do ato administrativo de lançamento tributário, na esfera da própria administração fazendária”, afirma o procurador.
Em novembro de 2015, antes da nova composição do Carf, uma decisão da 2ª Turma do TRF da 4ª Região julgou que o voto de qualidade previsto para decisões do Carf não ofende o devido processo legal.
Beatriz Olivon e Joice Bacelo – Brasília e São Paulo