No início do século XIX, a mulher quase não contava com direitos consolidados em sociedade. Aquelas que pretendiam estudar eram malvistas e o faziam sem saber se conseguiriam exercer a profissão.
Em comemoração ao Dia Internacional Da Mulher, celebrado em 8 de março, rememoramos a brilhante história de Myrthes Gomes de Campos, a primeira mulher a exercer a advocacia no Brasil.
Desmistificando o conceito de que o ofício era privilégio dos homens, Myrthes enfrentou preconceitos e foi pioneira na luta pelos direitos femininos, como o exercício da advocacia pela mulher, o voto feminino e a defesa da emancipação jurídica feminina.
Além de funcionária da Justiça, ela foi também a primeira mulher advogada a ingressar no antigo Instituto da Ordem dos Advogados do Brasil, atual Instituto dos Advogados do Brasil.
Ingresso na advocacia
Myrthes Gomes de Campos nasceu em Macaé/RJ, em 1875, e desde cedo demonstrou seu interesse pelas leis. No entanto, era impensável, à época, que uma mulher construísse uma vida fora do casamento. Foi uma surpresa à família quando a jovem anunciou que partiria para a capital do Estado para ingressar na Faculdade Livre de Ciências Jurídicas e Sociais do Rio de Janeiro.
Myrthes concluiu o bacharelado em Direito em 1898, mas, por conta do preconceito, foi só em 1906 que conseguiu legitimar-se profissionalmente, quando ingressou no quadro de sócios efetivos do Instituto dos Advogados do Brasil, condição necessária para o exercício profissional da advocacia.
Em 1899, em sua primeira tentativa de ingressar no Instituto, Myrthes foi orientada a se candidatar como estagiária, pois os estatutos da casa destinavam vagas dessa categoria aos advogados formados há menos de dois anos.
No mesmo ano, a Comissão de Justiça, Legislação e Jurisprudência se pronunciou a favor de Myrthes, por meio da Revista da IOAB. Eles buscaram romper o preconceito da época, sustentando que não havia qualquer lei que impedisse a mulher de exercer o ofício:
“[…] não se pode sustentar, contudo, que o casamento e a maternidade constituam a única aspiração da mulher ou que só os cuidados domésticos devem absorver-lhe toda atividade;
[…] Não é a lei, é a natureza, que a faz mãe de família;
[…] a liberdade de profissão é como a igualdade civil da qual promana, um princípio constitucional;
[…] nos termos do texto do art. 72, § 22 da Constituição o livre exercício de qualquer profissão deve ser entendido no sentido de não constituir nenhuma delas monopólio ou privilégio, e sim carreira livre, acessível a todos, e só dependente de condições necessárias ditadas no interesse da sociedade e por dignidade da própria profissão;
[…] não há lei que proíba a mulher de exercer a advocacia e que, importando essa proibição em uma causa de incapacidade, deve ser declarada por lei […].”
Mesmo com o parecer, apenas sete anos depois ela teve sua filiação aprovada em assembleia e foi totalmente aceita pelo Instituto.
De 1924 até sua aposentadoria, em 1944, Myrthes desempenhou o cargo de encarregada pela Jurisprudência do Tribunal de Apelação do Distrito Federal, que funcionou no antigo Palácio da Justiça do RJ de 1926 até 1946.
Primeira audiência
Também em 1899 Myrthes teve a oportunidade de atuar como defensora no Tribunal do Júri. Pela primeira vez no Brasil seria ouvida a voz de uma mulher patrocinando judicialmente uma causa. O fato, inusitado para a época, tornou-se sensação e foi amplamente noticiado nos jornais.
No dia do julgamento, uma verdadeira multidão formou-se em frente ao edifício do Tribunal. Há rumores de que mais de 500 pessoas tenham disputado lugar na sala onde funcionava o júri.
Com a plateia lotada para assistir à sua atuação, Myrthes surpreendeu o juiz, os jurados e até o réu, demonstrando profundo conhecimento do Código Penal e, sobretudo, por seu poder de argumentação. Ela venceu o promotor, até então considerado imbatível, e conseguiu a absolvição do réu.
Em seu discurso de abertura dos trabalhos de defesa, Myrthes tratou de reafirmar a importância histórica de sua atuação:
[…]. Envidarei, portanto, todos os esforços, afim de não rebaixar o nível da Justiça, não comprometer os interesses do meu constituinte, nem deixar uma prova de incapacidade aos adversários da mulher como advogada.
[…] Cada vez que penetrarmos no templo da Justiça, exercendo a profissão de advogada, que é hoje acessível à mulher, em quase todas as partes do mundo civilizado, […] devemos ter, pelo menos, a consciência da nossa responsabilidade, devemos aplicar todos os meios, para salvar a causa que nos tiver sido confiada.
[…] Tudo nos faltará: talento, eloquência, e até erudição, mas nunca o sentimento de justiça; por isso, é de esperar que a intervenção da mulher no foro seja benéfica e moralizadora, em vez de prejudicial como pensam os portadores de antigos preconceitos.
Sua presença no Tribunal era sempre um grande evento, reunindo curiosos e provocando o debate acalorado sobre a atuação da mulher na sociedade.
Estudos jurídicos
Myrthes foi colunista efetiva do Jornal do Commercio, responsável pelo preparo das matérias judiciárias, e assinou artigos em jornais e periódicos especializados, como a Revista do Conselho Nacional do Trabalho, a Folha do Dia e a Época. Deixou obra consistente no campo da jurisprudência, destacando-se sua atuação em trabalhos em prol da liberdade feminina, como artigos que discutiam a questão do voto feminino, a mulher como jurada e a emancipação jurídica da mulher.
Confira a reportagem especial sobre a Dra. Myrthes na revista A Semana, de 1920.
Mulheres de prestígio
Em 1897, ingressava na Faculdade de Direito do Largo São Francisco, em São Paulo, Maria Augusta Saraiva, a primeira mulher bacharel em Direito no Estado de São Paulo. Ela teve de se empenhar para ser admitida e concluiu o curso em 1902. Chegou exercer a advocacia, inclusive no plenário do júri, mas em decorrência do preconceito da época, abandonou a carreira. Em 1947, foi nomeada Consultora Jurídica do Estado de SP.
Desde a estreia de Myrthes, foram necessários 55 anos para que uma juíza fosse empossada no Brasil. O feito coube à magistrada de Santa Catarina Thereza Grisólia Tang, em 1954. Após o fato, outros 46 anos se passaram até que uma mulher, Ellen Gracie, fosse admitida no STF.
Este, aliás, é o melhor indício de que a falta de vontade em recepcionar mulheres nas instâncias de poder não é tão “do passado” assim. Com a aprovação da ministra Ellen Gracie, em 2000, constatou-se que o STF não estava fisicamente preparado para receber mulheres em seu quadro, já que não tinha sequer banheiro feminino para aquelas que porventura viessem ocupar o cargo.
A presença feminina nas carreiras jurídicas é crescente. Isso não teria sido possível sem a atuação de mulheres que foram verdadeiras desbravadoras e continuam, hoje, contribuindo para engrandecer a profissão e buscar um patamar mais igualitário com os homens.
Fonte: Jusbrasil.com